26 agosto 2011

PECADO ORIGINAL


Por Marcos Eduardo Caliari 
6º período do curso de Teologia da Faculdade Católica de Pouso Alegre
      Rodrigo Aparecido de Godoi 
8º período do curso de Teologia da Faculdade Católica de Pouso Alegre



1. Conceituação e dimensões bíblicas
Ao se referir à doutrina do pecado original, deve-se levar em conta que esta pressupõe, ao mesmo tempo, a compreensão de que “o homem tenha sido criado por Deus ‘na graça’, que desde o primeiro momento Deus tenha oferecido ao homem sua amizade. Somente partindo disso tem sentido falar de pecado como ruptura da aliança com Deus, da comunhão com Ele” (Ladaria, 1998, p. 85). Dessa forma, visando em um primeiro momento a conceituação de pecado original, o Catecismo da Igreja Católica oferece algumas pistas para a reflexão.

O começo do pecado e da queda do homem foi uma mentira do tentador que induziu a duvidar da palavra de Deus, de sua benevolência e fidelidade (Catecismo, 215).
O homem, tentado pelo Diabo, deixou morrer em seu coração a confiança em seu Criador e, abusando de sua liberdade, desobedeceu ao mandamento de Deus. Foi nisto que consistiu o primeiro pecado do homem. Todo pecado, daí em diante, ser uma desobediência a Deus e uma falta de confiança em sua bondade (Catecismo, 397).
Neste pecado, o homem preferiu a si mesmo a Deus, e com isso menosprezou a Deus: optou por si mesmo contra Deus, contrariando as exigências de seu estado de criatura e consequentemente de seu próprio bem. Constituído em um estado de santidade, o homem estava destinado a ser plenamente "divinizado" por Deus na glória. Pela sedução do Diabo, quis "ser como Deus", mas "sem Deus, e antepondo-se a Deus, e não segundo Deus" (Catecismo, 398).
De que maneira o pecado de Adão se tornou o pecado de todos os seus descendentes? O gênero humano inteiro é em Adão "sicut unum corpus unius hominis - como um só corpo de um só homem". Em virtude desta "unidade do gênero humano", todos os homens estão implicados no pecado de Adão, como todos estão implicados na justiça de Cristo. Contudo, a transmissão do pecado original é um mistério que não somos capazes de compreender plenamente. Sabemos, porém, pela Revelação, que Adão havia recebido a santidade e a justiça originais não exclusivamente para si, mas para toda a natureza humana: ao ceder ao Tentador, Adão e Eva cometem um pecado pessoal, mas este pecado afeta a Natureza humana, que vão transmitir em um estado decaído. É um pecado que será transmitido por propagação à humanidade inteira, isto é, pela transmissão de uma natureza humana privada da santidade e da justiça originais (Catecismo, 404)

                Conforme Kasper (apud Dantas, 2011): “O pecado original significa que a situação universal que determina cada um na sua interioridade, está efetivamente em contradição com a vontade originária da salvação de Deus, vontade que é imanente à criação na sua orientação para Cristo e para a sua realização n'Ele”. São aquelas ações que nós sabemos que são pecados, mas nossa vontade fala mais alto que a vontade de Deus em nossas vidas.
Sendo assim para se explicitar o pecado original deve-se partir de textos bíblicos que facilitem a compreensão. Assim, a doutrina do pecado original é construída, a partir do relato de Gn 3 e do texto de Rm 5,12-21. Na realidade, o texto de Gn 3, que não tem nenhuma intenção de apresentar uma história verídica do que ocorreu nos primórdios da humanidade, como se concebia até a primeira metade do século XX, busca explicitar antes a situação da humanidade, tentando encontrar as causas de tanto sofrimento, miséria e da própria morte. O relato da queda (Gn 3) utiliza uma linguagem feita de imagens, mas afirma um acontecimento primordial, um fato que ocorreu no início da história do homem (Catecismo, 390). A Revelação dá-nos a certeza de fé de que toda a história humana está marcada pelo pecado original cometido livremente por nossos primeiros pais.
Em virtude disso, Gn 3 deixa claro que o mal não vem de Deus, mas do próprio homem e, juntamente com tal declaração, o texto precisa que a natureza do pecado humano consiste em querer ser como Deus, ou seja, na sua auto-suficiência o ser humano recusa o dom do Senhor e se considera em pé de igualdade com Deus, negando a sua condição de criatura.
                Já o trecho neotestamentário, isto é, Rm 5,12-13: “Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porquanto todos pecaram. Porque antes da lei já estava o pecado no mundo, mas onde não há lei o pecado não é levado em conta”. Tal passagem aponta para o fato de que o pecado de Adão não prejudicou somente a si próprio, mas à humanidade toda, pois o gênero humano inteiro é em Adão, ou seja, todos os homens estão implicados no pecado de Adão: “Eis por que, assim como por um só homem o pecado entrou no mundo, e pelo pecado, a morte e assim a morte atingiu todos os homens: aliás todos pecaram” (Rm 5,12).
É importante, porém, ressaltar que, mesmo se referindo ao pecado de Adão, o objetivo primeiro do texto é cristológico, pois se busca afirmar a fé na salvação universal obtida por Jesus Cristo: “De fato, assim como, pela desobediência de um só homem, a multidão se tornou pecadora, assim também, pela obediência de um só [Jesus Cristo], a multidão se tornará justa” (Rm 5,19). Logo, Cristo e a graça prevalecem sobre o pecado: “onde proliferou o pecado superabundou a graça” (Rm 5,20). O artífice do pecado é o próprio homem. Ainda mais, além de artífice, ele é simultaneamente vítima, pois o pecado, especificamente, o pecado original, o qual provocou “a progressiva extensão do pecado a toda história do homem” (João Paulo II, 2005, p. 17), foi profundamente sentido no homem.
Faz-se importante salientar também que o termo pecado original designa duas realidades diferentes: uma quando se fala do pecado cometido nas origens; outra, quando se fala do pecado contraído por cada um de nós desde o primeiro instante de nossa existência. O pecado das origens chamado pelos teólogos pecado original originante é aquele que a Bíblia chama de pecado de Adão. É segundo a explicação corrente, o ato pecaminoso que inaugurou a história de nossa humanidade pecadora. O pecado original em nós, chamado pelos teólogos de pecado original originado, tem um sentido diferente. Não é um ato pessoal do qual o homem se torna culpado. Designa nossa condição ao nascer enquanto não comporta em si mesma a participação na vida de amizade com Deus (Bur, 1991, p. 15). O pecado incapacita o homem de por si só se realizar pessoalmente no amor a Deus e aos homens. A doutrina do pecado original é apenas uma das faces da medalha; nunca se pode vê-la sozinha, isto é, independentemente da outra face que é a redenção de Cristo. Quando dizemos que o homem vem ao mundo sob o signo do pecado, dizemos só meia verdade porque também vem ao mundo sob o signo de Cristo.

2) Desenvolvimento histórico da doutrina do pecado original
                No que se refere à explicitação eclesial da doutrina do pecado original, dois momentos são fundamentais na história desta doutrina: santo Agostinho (354-430) e a crise pelagiana, como também o Concílio de Trento (1545-1563). Cabe assinalar que foi através da reação eclesial liderada por Agostinho contra o pelagianismo que se formulou a denominação de pecado original e que se clarificou o conteúdo desta doutrina.
                Na realidade, Pelágio (370-432), um monge austero, originário da Grã-Bretanha, defendia que a vontade é capaz, sem auxílio da graça, de querer e executar o bem. Ele não nega o pecado histórico de Adão, porém rejeita que este pecado foi transmitido aos seus descendentes. O único efeito negativo do pecado de Adão é o seu mau exemplo, que pode suscitar o desejo, nos homens, de imitá-lo. Contra tais teses, Agostinho vai defender, veementemente, que o pecado de Adão causou a corrupção da natureza humana e que esta foi transmitida para toda a humanidade. A partir deste prisma, o homem necessita constantemente da graça de Deus, porque sem esta é, categoricamente, incapaz de evitar o pecado, ao qual está inclinado pela concupiscência, ou seja:

Existe um verdadeiro pecado de origem (Adão), afirma santo Agostinho, transmitido a toda a humanidade (solidariedade do gênero humano com Adão como seu representante) a explicar o mal e a situação negativa em que o ser humano se encontra assim como a absoluta necessidade da redenção de Cristo e da graça interna oferecida ao homem para curar as feridas do pecado e tornar possível a realização de atos que conduzam à vida eterna (Rubio, 2001, p. 631-632).
                       
                       
                Em Trento, contudo, a controvérsia é bastante diferente da que foi enfrentada por Agostinho, porque agora não se está combatendo a negação do pecado original. Pelo contrário, diante das concepções de Lutero de que a natureza humana se encontra totalmente corrompida após o pecado original, que após a culpa de Adão o homem se encontra vendido ao pecado, não possuindo sequer uma vontade livre, o Concílio de Trento terá que defender que, embora, a natureza humana se encontre ferida pelo pecado, ela ainda se mantém íntegra naquilo que é substancial.
                Para tanto, considera-se também que o pecado original “não pode ser identificado com a concupiscência, que permanece no batizado, mas não prejudica a quem luta contra ela com a graça de Deus” (Ladaria, 1998, p. 90). O Concílio, porém, não se pronunciou sobre a essência do pecado e, dessa forma, acabou apresentando uma descrição bastante geral sobre o assunto, cujo ensinamento fundamental pode ser assim resumido: “‘o batismo liberta o homem de todo pecado (contra a justificação protestante)’. ‘Todo ser humano que vem a este mundo precisa do perdão de Deus (doutrina do pecado original)’” (Agostini, 2001, p. 347).

3) Consequências do pecado original
                A Escritura mostra claramente que as consequências desta primeira desobediência foram dramáticas, pois Adão e Eva, ao desobedecerem ao mandamento divino, o qual é representado simbolicamente pela proibição de comer da árvore do conhecimento do que seja bom ou mau (cf. Gn 2,17), perderam de imediato “a santidade e a justiça nas quais tinham sido constituídos” (DZ 1511). Com isso,

A harmonia na qual estavam, estabelecida graças à justiça original, está destruída; o domínio das faculdades espirituais da alma sobre o corpo é rompido; a união entre o homem e a mulher é submetida a tensões; suas relações serão marcadas pela rupidez e pela dominação. A harmonia com a criação está rompida: a criação visível tornou-se para o homem estranha e hostil. Por causa do homem, a criação está submetida “à servidão da corrupção” (Rm 8,20). Finalmente, vai realizar-se a consequência explicitamente anunciada para o caso da desobediência: o homem “voltará ao pó do qual é formado” (Gn 3,19). A morte entra na história da humanidade (Catecismo, 400).

                O homem é privado então dos chamado bens preternaturais, ou seja, os dons que o homem teria possuído caso não tivesse caído no pecado e que não lhe foram devolvidos com a graça de Cristo. “No magistério da Igreja, encontramos sobretudo referências a dois desses bens perdidos: a integridade ou ausência de concupiscência e a imortalidade” (Ladaria, 1998, p. 101), isto é, a possibilidade de poder não pecar e a possibilidade de poder não morrer.
                Além do mais, a partir dessa primeira ruptura, “uma verdadeira ‘invasão’ do pecado inunda o mundo” (Catecismo, 401), ou seja, o primeiro pecado não prejudicou somente os primeiros pais, mas também toda a sua descendência (DZ 1512), uma vez que todos os homens estão implicados no pecado de Adão (cf. Rm 5,19). Contudo, como se dá propagação do pecado original (cf. DZ 1513) ainda permanece um mistério que não somos capazes de compreender plenamente (Catecismo, 404). Dessa forma, é possível se afirmar que embora próprio a cada um, o pecado original não apresenta um caráter de falta pessoal, isto é, o pecado original “é denominado ‘pecado’ de maneira analógica: é um pecado ‘contraído’ e não ‘cometido’, um estado e não um ato (Catecismo, 404).
***
            Aliás, é preciso assinalar que, embora a Tradição cristã tenha recorrido frequentemente à doutrina do pecado original para oferecer uma explicação para a questão do mal, atualmente, as dificuldades para se aceitar tal compreensão ou para se precisar seu verdadeiro sentido são muito numerosas, especialmente, diante da visão evolucionista do mundo e da própria antropologia cristã que acentua fortemente o valor da dignidade do ser humano, o qual é chamado à liberdade e à responsabilidade (Rubio, 2001, p. 636-637).
            Em suma, apesar de tais dificuldades, é preciso “continuar afirmando a importância decisiva que tem para a existência cristã a mensagem do pecado original” (Rubio, 2001, p. 638), sem se esquecer de que “a exposição da doutrina do pecado original não pode ser feita de tal modo que pareça pôr em dúvida a vontade salvífica universal de Deus, a eficácia da redenção em Cristo” (Ladaria, 1998, p. 86), porque tal doutrina “se desenvolveu apenas a partir da perspectiva da salvação que Jesus nos oferece e não como um ensinamento ‘prévio’ à cristologia” (Ladaria, 1998, p. 86).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGOSTINI, Nilo. O mal nos desafia. Perspectiva Teológica. Belo Horizonte, v. 33, n. 91, set./dez. 2001. p. 331-362.
BUR, Jacques. O pecado original: o que a Igreja de fato disse. Aparecida: Editora Santuário, 1991.
CATECISMO da Igreja Católica. 5. ed. São Paulo: Vozes/Paulinas/Loyola/Ave-Maria, 1993.
DANTAS, Sandra. 
Para uma definição do Pecado Original. Disponível em: < http://teologar.blogspot.com/2007/12/para-uma-definio-do-pecado-original.html> Acesso em 10 ago 2011.
DENZINGER, Heinrich; HÜNERMANN, Peter. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Loyola/Paulinas, 2007.
JOÃO PAULO II, Papa.  Memória e identidade: Colóquio na Transição do Milênio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
LADARIA, LUIS F. Introdução à Antropologia Teológica. São Paulo: Loyola, 1998.
RUBIO, Alfonso García. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristã. São Paulo: Paulus, 2001.
Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). Direção: Gabriel C. Galache. São Paulo: Loyola, 1994.

 
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