25 agosto 2011

LEITURA EXISTENCIAL DA BÍBLIA



Por Thiago de Oliveira Raymundo

Aluno do 4º período do curso de Teologia – Faculdade Católica de Pouso Alegre

É possível relacionar vida e Bíblia? Na exegese bíblica, o que se fala sobre uma leitura vivencial da Bíblia? O que o Magistério orienta sobre a leitura e a interpretação bíblicas? As presentes questões encaminham, pois, a argumentação a seguir, que visa aproximar a vida humana da Bíblia, já que esta “esclarece os rumos do cotidiano, aponta caminhos” (ECNBB 86, 87).
     A Bíblia está intimamente ligada à vida dos homens e mulheres do tempo presente, pois é necessário que o seu leitor esteja consciente da sua realidade existencial para interpretar o texto sagrado. Não é possível dissociar o contexto no qual o leitor está imbuído para que ele interprete aquilo que lê, pois a sua visão de mundo, sua história e sua vida contribuem de modo assaz para o processo de interpretação. Este princípio encontra-se na hermenêutica desenvolvida por Hans-Georg Gadamer. Sem abarcar todo este conjunto filosófico, percebe-se que ele traz um elemento importante para a primeira questão acima, a partir do que o filósofo alemão entendia por hermenêutica: “Trata-se de uma atitude teórica frente à práxis da interpretação, da interpretação de textos; porém, também, das experiências interpretadas neles e nas orientações do mundo, que se desenvolvem comunicativamente” (1983, p. 77). A interpretação existencial de textos descrita por Gadamer tem, pois, como objetivo “... inserir a interpretação num contexto – ou de caráter existencial, ou com as características do acontecer da tradição na história do ser – em que interpretar permite ser compreendido progressivamente como uma autocompreensão de quem interpreta” (Stein, 2002, p. 4). Desse modo, a vida do leitor da Bíblia, isto é, o contexto existencial daquele que se propõe a lê-la, influencia a interpretação do texto bíblico. Porém, o que aqui é afirmado sobre a hermenêutica não nega o que faz parte da Tradição: “... a autêntica hermenêutica da Bíblia só pode ser feita na fé eclesial” (VD 29), pois aquele que lê a Bíblia e deseja compreendê-la de modo completo, certamente deve ser um sujeito eclesial, ser Igreja, e interpretar a Escritura na fé da comunidade, o que já determina condições importantes de sua vida e, consequentemente, seu ato de interpretar. É o que diz o ECNBB 86, 87: “A reflexão sobre a própria experiência existencial do(a) leitor(a) também ilumina o texto, cria intimidade com as questões bíblicas, permite que o passado interpele o presente e, dessa forma, dá vida ao texto. É uma contribuição recíproca entre a Bíblia e a realidade do(a) leitor(a)”. Gass continua esta mesma ideia: “Para se ler a Bíblia com proveito, é importante ter os pés bem fincados na nossa vida pessoal, bem como na vida sofrida do povo. É em função da nossa vida real que vamos ao texto sagrado” (2002, p. 13).
            Além disso, a vida também se relaciona com a Bíblia no que diz respeito ao seu conteúdo, pois é possível perceber que o próprio texto sagrado é composto da história de vida do Povo de Deus. É um livro elaborado por muitos e que, inspirado por Deus, contém: a caminhada de fé deste povo eleito, expressando “... a verdadeira pedagogia divina” (DV 15); a nova e eterna Aliança em Cristo, na plenitude dos tempos; e a expressão de fé daqueles que o viram como Filho de Deus, constituindo um “... testemunho perene e divino ...” (DV 17). Assim, o conteúdo da Bíblia é Palavra de Deus transmitida através da vida de muitos que fizeram experiência Dele: “Nela [na Bíblia] encontramos a Palavra de Deus transmitida para todos nós pela vida e pela palavra de milhares homens e mulheres que viveram alegrias e tristezas, construindo juntos a história do Povo de Deus que conhecemos” (Rosa, 2010, p. 9). Portanto, a vida e suas condições humanas fazem-se presentes na Bíblia naquilo que diz respeito ao seu conteúdo e ao seu possível leitor. Há, pois, nítida relação entre Bíblia e vida: “A nossa leitura bíblica é a confrontação com a vida, onde Deus continua presente” (ECNBB 86, 53).
            Diante da íntima ligação entre Bíblia e vida, na exegese bíblica, muitos autores destacam uma leitura vivencial do texto sagrado, também chamada de existencial. Para tal, afirma-se a necessidade de interpretar a Bíblia com olhos fixos na realidade da vida: “Interpretar a Bíblia, sem olhar a realidade da vida, é o mesmo que manter o sal fora da comida, a semente fora da terra, a luz debaixo da mesa; é como galho sem tronco, olhos sem cabeça, rio sem leito” (Mesters, 1983, p. 26). Sabe-se que é a Bíblia que ilumina a vida humana: “a leitura da Bíblia quer nos ajudar em nossos dias a perceber a presença viva de Deus, do seu sonho de vida e esperança, de paz e solidariedade. Por isso, a Palavra de Deus é, acima de tudo, como a luz de um farol que indica o caminho por onde andar. (...) Nela encontramos sentido para nossas vidas” (Gass, 2002, p. 11). Mosconi contribui indicando o que motiva o leitor da Sagrada Escritura:

Vamos à Bíblia buscando luzes e força para a vida hoje. Vamos à Bíblia carregando nossos anseios, nossa história, nossas perguntas, nosso corpo, nossas fragilidades e lutas, nossos sonhos e frustrações, para fazer lá dentro a grande pergunta: ‘Ei, pessoal, vocês já passaram por essas experiências da vida? Qual o sentido vocês deram à própria vida?’ (2002, p. 31).
                       
            Além disso, este mesmo autor, ao tratar do conteúdo do texto bíblico, apresenta: “[a Bíblia] oferece uma proposta autêntica aos anseios profundamente humanos que habitam em nós. Realmente, a Bíblia é Palavra de vida eterna, quer dizer, sempre atual, sempre nova, nunca velha, sempre provocante e iluminadora” (2002, p. 32).
            Portanto, o que seria fazer uma leitura existencial da Bíblia? Mosconi responde que este tipo de abordagem é “ir a Bíblia com as nossas perguntas existenciais e deixar que ela fale, interpele, questione e ilumine” (2002, p. 33). Gass indica um processo semelhante com etapas mais detalhadas, propondo uma interpretação que atinja a pessoa, a comunidade e a sociedade: “O processo hermenêutico só estará completo quando interpretarmos e atualizarmos a mensagem daquela época para a realidade da Pessoa, da Comunidade e da Sociedade de hoje. (...) essa mensagem iluminará mais nossa caminhada, na medida em que atualizarmos para a nossa realidade hoje” (2002, p. 16). Konings indica um processo semelhante, com destaque para um reviver do texto sagrado em sua tradição e na situação nova em que se encontra o leitor:

Assim se torna possível projetar sobre as palavras do passado o sentido de hoje. Ler a Bíblia é compreender as palavras antigas tanto no quadro em que surgiram como no quadro de nossa atualidade. É fazer reviver a palavra antiga, a partir da tradição que ela criou para chegar até nós, na nova situação em que nos encontramos (1999, p. 70).
                       
            Enfim, na mesma linha, afirma Mesters, indicando que Deus se revela na vida dos homens de hoje através de uma leitura atualizada da Escritura:

... que a Bíblia seja lida através dos óculos da sensibilidade e da problemática que hoje marcam a vida dos homens. Na confluência entre a realidade de hoje e a história bíblica do passado, surge a luz da Revelação de Deus na estrada da vida, mostrando que essa nossa caminhada pela vida, esta nossa história, é uma história de salvação onde Deus já está, mas onde a Sua presença ainda não é percebida" (1979, p. 201-202) .

            Com isso, é possível afirmar que a leitura existencial da Bíblia é o modo de abordagem bíblica que está aberto para a realidade atual, que busca ler o texto sagrado com os olhos e anseios do presente; saber o que diz a Sagrada Escritura, pois se tem consciência do que ela é, isto é, Palavra de Deus, lâmpada para os pés e luz para o caminho (Sl 119, 105); e não desconsiderar, é evidente, a exegese bíblica e suas conclusões, que muito auxiliam a interpretação bíblica, e a Tradição.
            Por último, faz-se importante identificar algumas orientações sobre a leitura e a interpretação bíblicas presentes em documentos do magistério. Em VD 99, há a afirmação da influência que a Palavra de Deus determina na existência humana: “A Palavra divina ilumina a existência humana e leva as consciências a reverem em profundidade a própria vida, porque toda a história da humanidade está sob o juízo de Deus”. Além disso, esta Exortação Apostólica Pós-sinodal, ao defender a interpretação da Escritura na Igreja, faz um forte apelo: “é preciso que os exegetas, os teólogos e todo o Povo de Deus se abeirem dela por aquilo que realmente é: como Palavra de Deus que Se nos comunica através de palavras humanas” (VD 29). Porém, a proposta de leitura existencial da Bíblia não quer contradizer as orientações do Magistério, como se fosse um método de leitura sociológico ou secularizado. Por isso, para tal abordagem, faze-se necessário ter como fundamento a fé eclesial para que não haja “... uma hermenêutica secularizada, positivista, cuja chave fundamental é a convicção de que o Divino não aparece na história humana” (VD 35).
            O texto elaborado pela Pontifícia Comissão Bíblica apresenta elementos de várias abordagens do texto bíblico para a sua interpretação. Dentre elas, há aquela que se dá através da história dos efeitos do texto, que ressalta o contexto histórico do leitor e sua vida, sem deixar de apontar para a possibilidade de ocorrência de interpretação tendenciosa, neste caso:

Colocar-se em presença do texto e de seus leitores suscita uma dinâmica, pois o texto exerce uma irradiação e provoca reações. Ele faz ressoar um apelo, que é ouvido pelos leitores individualmente ou em grupos. O leitor, aliás, não é nunca um sujeito isolado. Ele pertence a um espaço social e se situa em uma tradição. Ele vem ao texto com suas questões, opera uma seleção, propõe uma interpretação e, finalmente, ele pode criar uma outra obra ou tomar iniciativas que se inspiram diretamente na sua leitura da Escritura (IBI, I, C, 3).

            DV 24 apresenta a íntima ligação que deve haver entre Escritura e Teologia, princípio importante para o ambiente acadêmico, do qual parte esta pesquisa: “A Sagrada Teologia apóia-se, como em perene fundamento, na palavra escrita de Deus juntamente com a Sagrada Tradição, e nesta mesma palavra se fortalece firmissimamente e sempre se remoça perscrutando à luz da fé toda a verdade encerrada no mistério de Cristo”. Assim, para o curso de Teologia, a área de Sagrada Escritura é fundamental e dela deve surgir interpretações fiéis à Tradição e, ao mesmo tempo, que parta da vida daqueles que se propõem a ser Igreja e ilumine sua caminhada de fé.
            Os bispos do Brasil mostram que a Bíblia foi “feita para iluminar a vida e construir um mundo melhor” (ECNBB, 98). Além disso, apresentam-se os Círculos Bíblicos, o maior uso da Palavra nas celebrações e a melhor preparação de agentes de pastoral (leitores, ministros da Palavra, presidentes de celebração, pregadores) como caminhos sugeridos pela CNBB para ler a Bíblia com a Igreja-comunidade:

Círculos bíblicos podem nascer a partir do desejo de aprofundar o que se ouviu e experimentou na assembléia litúrgica. Outro cuidado importante seria a valorização da proclamação da Palavra nos vários tipos de celebração. Ter pessoas bem preparadas, capazes de proclamar com clareza e reverência a Palavra, pode dar uma força maior à comunicação na Liturgia (ECNBB, 96).

            Por fim, vê-se que os bispos latino-americanos reafirmam a necessidade de reforço da formação bíblica na Igreja, associada a sua fé e que se dá de modo vivencial e comunitário:

Junto a uma forte experiência religiosa e uma destacada convivência comunitária, nossos fiéis precisam aprofundar o conhecimento da Palavra de Deus e os conteúdos da fé, visto que esta é a única maneira de amadurecer sua experiência religiosa. Nesse caminho, acentuadamente vivencial e comunitário, a formação doutrinal não se experimenta como conhecimento teórico e frio, mas como ferramenta fundamental e necessária no crescimento espiritual, pessoal e comunitário (DAp 226c).

            Percebe-se, pois, nos documentos magisteriais duas grandes contribuições necessárias para uma abordagem existencial da Bíblia: a) o documento conciliar, o da Comissão Pontifícia e o Pós-sinodal são mais abrangentes e se esforçam para assegurar uma leitura e interpretação mais fiéis à Tradição eclesial; b) os documentos da CELAM e da CNBB, por sua natureza particular, desenvolvem com mais tranquilidade e segurança o requisito de uma interpretação aberta à vida do povo para que este também seja iluminado, de acordo com suas condições e situações históricas, pela Palavra Deus, sem se prescindir da primeira contribuição acima.
            Visto tudo isso, afirma-se que a leitura existencial da Bíblia é necessária para que sua interpretação, na Igreja, ilumine ainda mais a vida de fé das comunidades, dando sentido a elas e revelando Deus para os fiéis.


Lista de abreviaturas
DAp – Documento de Aparecida
DV – Dei Verbum
ECNBB – Estudos da CNBB
IBI – A Interpretação da Bíblia na Igreja
VD – Verbum Domini

Referências bibliográficas
BENTO XVI, papa. Exortação Apostólica Pós-sinodal Verbum Domini: sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2010.
CONCÍLIO VATICANO II. Dei Verbum: constituição dogmática sobre a Revelação Divina. In: VIER, F. (Coord.). Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos e declarações. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 1975.
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Crescer na leitura da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2003. Estudos da CNBB 86.
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. Brasília: CNBB, 2007.
GADAMER, H.-G. A razão na época da ciência. Trad. Ângela Dias. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
GASS, I. B. Uma introdução à Bíblia: porta de entrada. São Leopoldo: CEBI, 2002.
KONINGS, J. A palavra se fez livro. São Paulo: Loyola, 1999.
MESTERS, C. Flor sem defesa: uma explicação da Bíblia a partir do povo. Petrópolis: Vozes, 1983.
MESTERS, C. Palavra de Deus na história dos homens. Petrópolis: Vozes, 1979. v. 2.
MOSCONI, L. Para uma leitura fiel da Bíblia. São Paulo: Loyola, 2002.
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A Interpretação da Bíblia na Igreja. 4. ed. Paulinas; São Paulo, 2000.
ROSA, D. A. Projeto do Pai: roteiro de estudo para o Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2010.
STEIN, E. A consciência da História: Gadamer e a Hermenêutica. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 mar. 2002. Mais, p. 4.





 
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