25 agosto 2011

BÍBLIA E VIDA. A PORTA DE ENTRADA NO MUNDO DA BÍBLIA



Autoria de Carlos Mesters


Entrando no mundo da Bíblia, somos como o homem do interior que foi visitar uma cidade onde nunca estivera antes. Chegou lá, tímido e só, não conhecendo nada e ninguém. Não se sentia a vontade à vontade. Morria de saudade, querendo voltar para a sua terra.
            Mas, de repente, na praça, viu um banco e uma casa iguais aos que havia na sua própria cidade. Encontrou algo que lhe era familiar e já se sentia um pouco mais à vontade. Estando perto do banco, teve a sorte de encontrar um conhecido: _ “Oh, fulano, você por aqui?” _ “Pois é, eu moro nesta cidade”. Tiveram uma longa e animada conversa, lembrando as coisas que ambos conheciam. No fim da conversa, a timidez e a solidão desapareceram. Era como se estivesse em casa.
            Então, foi abrindo os olhos com simpatia, observando as coisas boas e más que havia por lá. Observou como todos tinham um capacho na frente da porta, para manter a casa mais limpa. Viu como em todas as ruas haviam grandes árvores, que davam sombras no dia de calor. Voltando para a casa, depois de alguns dias, logo colocou um capacho na frente da porta de sua casa e sugeriu ao prefeito que se plantassem árvores nas ruas.
            Mas um colega daquele fulano foi visitar a mesma cidade. Não viu o banco nem a casa na praça. Não encontrou ali nenhum amigo conhecido. Passou três dias muito desagradáveis na solidão, pois não havia ali nada de familiar que lembrasse a sua cidade. Voltou muito aborrecido: _ “Não gostei, não. Aqui é muito melhor. Imagine só: aquela gente é tão estranha que chega ao ponto de colocar tapete na frente da porta! Não dá nem para andar nas ruas, tanta a árvore que há por lá. Árvore, no meu entender, é para ficar no mato e não no meio da rua!”
            Assim somos nós, visitando o mundo da Bíblia. Quem não encontrar lá dentro nada de conhecido ou de familiar que lembre sua terra e seus problemas, esse dificilmente criará dentro de si uma abertura para apreciar as coisas boas que lá existem. A primeira exigência de quem explica a Bíblia nos parece ser: apontar o banco, a casa, a praça e permitir o encontro com os conhecidos que moram por lá e que são muitos. Do contrário, a reação será: _ “Interessante, mas não gostei. No Brasil é muito melhor!” Podemos, então, fazer recurso à autoridade da Bíblia. Talvez seja aceita. Mas será uma aceitação forçada, sem convicção, como se aceita a autoridade de um professor antipático. Não convence.
            Essa atitude frente à Bíblia que procura apontar o banco e a casa na praça caracterizou os grandes exegetas do passado. A realidade sofrida e vivida do povo sempre influenciou profundamente a explicação que faziam da Bíblia.
A queda de Roma, por exemplo, em, que marcou o horizonte da existência humana daquele tempo, foi para santo Agostinho uma luz que lhe deu uma nova compreensão dos textos antigos da Bíblia. Começou a ler a Bíblia com outros olhos, olhos sensibilizados pela problemática nova de vida, e descobriu lá dentro as coisas que antes não percebera. A Bíblia, assim compreendida, o ajudou a compreender melhor o sentido e o alcance da queda de Roma. Agostinho pôde, por isso mesmo, oferecer uma orientação no encaminhamento da vida, naquele momento crítico da história. Encontrou-se consigo mesmo e com os problemas do seu povo, naquelas páginas velhas, e elas começaram a falar. O resultado dessa sua compreensão nova da Bíblia começou a ser publicado, três anos depois, sucessivamente, em livros, desde 413 até 426. Juntos, perfazem a obra monumental “A cidade de Deus”, livro que marcou a história do Ocidente até hoje.
João Crisóstomo, do século quarto, é considerado até hoje dos melhores comentadores das cartas de São Paulo. A razão disso não está só na sua elevada ciência, mas também na sua vida atribulada de muita perseguição. Sua vida foi semelhante à vida atribulada de São Paulo. João Crisóstomo escutava naquelas cartas, conforme ele mesmo diz, uma “voz amiga”. Portanto, os problemas da vida criaram nele uma espécie de conaturalidade com o Apóstolo. Aqui estava a chave da excelência da sua interpretação.
Estes e outros exemplos mostram o seguinte: Fatos, acontecimentos, problemas, preocupações, experiências e vivências do século IV e V trouxeram uma contribuição substancial para a compreensão dos velhos textos da Bíblia. Aqueles exegetas não eram neutros ao interpretarem a Bíblia. Ao abrirem a Bíblia, eram motivados por perguntas bem concretas, levantadas pela vida e pela história, para as quais buscavam uma resposta. A sua preocupação maior não era: “Qual é o sentido deste ou daquele texto para nós? A realidade que estava sendo entrava como fator constitutivo na determinação do sentido dos textos. E é só assim que o texto começa a falar de fato, tanto hoje como ontem.
O imenso cabedal da ciência exegética, acumulada durante os últimos anos, permite hoje penetrar com mais objetividade da Bíblia, até atingir a situação humana onde encontraremos algo de nós mesmos que nos é familiar: o banco, a casa, a praça e o amigo. E’ o que procuramos fazer nas análises deste e de outro livrinho: ler a Bíblia, levando conosco as perguntas que a nossa realidade levanta. Motivados pelo problema e pelas preocupações de hoje, sem diminuirmos em nada a objetividade da história, tentamos apresentar o conteúdo da Bíblia de maneira de maneira a encontrar lá dentro um amigo com o qual podemos ter uma conversa em profundidade sobre aquilo que temos em comum. Encontramos esse amigo não só para descobrir nele a uma confirmação das nossas idéias. Pelo contrário. Ele nos criticou e denunciou muitas ideias e posições que nós considerávamos como certas. Sobretudo, ele nos despertou e abriu o nosso interesse para aquele valor que foi a grande alegria da vida dele, a saber, a certeza de que Deus caminha com os homens. Possivelmente, a Bíblia nos estimulará a procurar e a descobrir esse mesmo valor na nossa própria vida Essa procura e descoberta nos parecem ser o objetivo da Bíblia para nós.
Para quem souber ler e escutar com os olhos e ouvidos sensibilizados pela problemática que hoje aflige os homens, a Bíblia fala de coisas profundamente humanas, revelando nelas o apelo de Deus. Precisamente por descrever coisas tão profundamente humanas, bem nossas, a Bíblia começará a ter uma verdadeira autoridade. Não será uma autoridade que vem de cima para baixo e que se aceita por decreto, mas uma autoridade que nasce do valor que oferece e do serviço que presta; autoridade de quem mostra estar por dentro das coisas da vida e conhecer profundamente a problemática da existência humana. Só assim a Bíblia será respeitada como deve ser respeitada, só assim será introduzida e aceita na convivência dos homens, liberando pouco a pouco a mensagem que tem que comunicar sobre o sentido da vida humana, só assim os homens se decidirão a defender a Bíblia, pois defendendo a Bíblia defenderão a esperança que ela fez no coração.
Na base duma competição honesta, avaliada pelo serviço que ela presta e pelo valor que oferece, a Bíblia disputará, junto com as outras filosofias e religiões, um lugar no coração dos homens. A razão disso é que Deus tem um amor muito grande à verdade. E a verdade, para poder ser verdade, é objeto de descoberta e de aceitação. Onde no homem houver amor a verdade à verdade, lá a voz da Verdade será escutada, reconhecida e aceita (cf. Jo 18,37). A verdade assim descoberta trará consigo a sua própria evidência, que se impõe a consciência, revelando Autor de toda a verdade: Deus. Assim, cada geração verifica e redescobre o sentido e a função da verdade de fé que anima a Igreja, a saber, que Deus é o Autor da Bíblia.
Não se deve esperar demais da Bíblia e cair num biblismo, nem de menos e cair num ceticismo. A Bíblia não é um instrumento operacional de trabalho na execução de projetos humanos. Ela não resolve problemas nem dá receitas. Apenas abre pista, corrige desvios, aponta causas, acende luzes. A Bíblia não pode dar Deus a ninguém. Nem é possível que possua tal força. Deus mesmo se dá quando e como Ele quiser. A Bíblia apenas descreve fatos, situações, experiências, esforços, ideais, verdades e valores que para os outros foram a porta para um encontro com Deus. Ela, assim, sensibiliza e desperta para uma dimensão da vida que é muito real, embora não seja uma dimensão visível e verificável empiricamente, estatisticamente. É a dimensão divina do humano.

Condição para a descoberta dessa dimensão é que a Bíblia seja lida através dos óculos da sensibilidade e da problemática que hoje marcam a vida dos homens.na confluência entre a realidade e a história bíblica do passado, surge a luz da Revelação de Deus na estrada da vida, mostrando que essa nossa caminhada pela vida, esta nossa história de salvação onde Deus já está, mas onde a Sua presença ainda não é percebida.


MESTERS, Carlos. Flor sem defesa: uma explicação da Bíblia a partir do povo. Petrópolis: Vozes, 1983.

 
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